A Caatinga é o bioma brasileiro menos conhecido, em todos os aspectos,
seja na sua biodiversidade, pluralidade geográfica ou estoque de recursos.
Alguns estudos têm mostrado que mais da metade desse bioma já foi drasticamente
devastado, resultando em áreas pobres de recursos naturais e fortes candidatas
a sofrerem com um fenômeno chamado de “desertificação”. Mas quero levantar outra
questão aqui. Uma parte do semiárido brasileiro, onde se encontra o coração da
Caatinga, está enfrentando a pior seca dos últimos 30 anos, e mais de 300
municípios já declararam estar entrando em colapso por falta de água e cerca de
550 já declararam estado de emergência. Imagens de satélite tem demonstrado que
80% do semiárido do nordeste do Brasil já foi afetado, colocando a
sobrevivência de milhões de pessoas em situação complicada. A causa da seca não
passa de especulações que variam de flutuações normais no regime de chuvas até
mudanças climáticas aceleradas pelo homem, mas as consequências são visíveis e
necessitam de um manejo urgente. A falta de água causou a morte dos animais de
criação, como gado, cabras e galinhas, e está impedindo o estabelecimento de
plantios agrícolas, resultando diretamente na diminuição de alimento para a
população dessa região do país.
Como consequência de escassez de alimento e água, a população tem
aumentado a pressão de caça sobre a fauna silvestre, que é usada como alimento
e como artigo de venda para gerar recursos financeiros aplicados na compra de
água e comida advindas de outras regiões do Brasil. Durante as minhas viagens
pela Caatinga, entre 2010 e 2012, eu pude observar de perto o comportamento do
sertanejo nordestino, seus hábitos de produção agropecuária e caça, o que me
ajudou a interpretar melhor o triste cenário que se forja no semiárido
brasileiros graças a essa seca. O hábito de caçar animais de porte médio e
grande na Caatinga, especialmente aves e mamíferos, sempre esteve associado ao
comportamento dos povos locais, especialmente na época seca do ano, onde o
plantio agrícola é dificultado e a oferta de alimento menor. A atividade de
caça nessas regiões é especialmente mais intensa em propriedades e municípios
menores, mais pobres e mais isolados de outros municípios geograficamente, onde
o consumo de animais silvestres não é um fenômeno cultural e sim uma
necessidade nutricional.
Pele de gato-mourisco (Puma
yagouaroundi) morto para servir
de alimento em São João do Piauí.
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Contudo, devido a esse grande período de seca não é surpreendente que a
atividade de caça tenha ficado ainda mais intensa, tornando-se, de fato, um
grave problema para a conservação da biodiversidade. A retirada massiva de
animais (dafaunação) pode resultar não só na inviabilidade populacional das
espécies mais sensíveis, mas modificar os processos de interações ecológicas
que, por consequência, poderá acarretar na perda de determinados serviços
ecológicos, como a dispersão de sementes, trazendo graves consequência a
manutenção regional de áreas da Caatinga. Como se não fosse ruim o suficiente,
esse cenário se torna ainda pior considerando alguns dos métodos de caça da
população sertaneja. Além da busca ativa e morte por tiro de arma de fogo, um
método muito usado na Caatinga é o ateamento de fogo na vegetação para
afugentar e acuar os animais, facilitando assim sua captura. Além disso, os
animais que por ventura não conseguirem fugir do incêndio e morrerem queimados
ou sufocados pela fumaça também são coletados. Além de ser uma forte ameaça à
fauna, a caça na Caatinga também põe em risco importantes parcelas de vegetação
nativa. Além disso, o povo da Caatinga também usa a vegetação para servir de
combustível para fornos de fabricação de tijolos, que servem como fonte de
renda extra que permite a compra de alimento e água vinda de outras regiões do
país.
Embora a mídia, especialmente de internet, tenha noticiado o fenômeno dessa
seca, não vi qualquer informação referente aos impactos sobre a população
humana e biodiversidade. Estamos diante de um dilema pouco comum nas sociedades
modernas, onde estamos assistindo um duelo prático, que não deveria existir, entre
a sobrevivência humana e a conservação da biodiversidade. Não vi uma cobertura ou
crítica satisfatória sobre suas implicações diretas sobre a sociedade e meio
ambiente. Estamos no escuro. De certo isso não é culpa do governo, mas é fato
que os efeitos poderiam ser amenizados se houvesse um planejamento e interesse,
mas sinceramente, isso é texto pra outra hora.
Sinceramente, eu não condeno a população do sertão e não posso dizer que eles estão errados. A luta pela sobrevivência cria situações complexas e difíceis de interpretar. Mas seja como for, o importante a ser demonstrado é que uma grande parte do nosso país está
passando por problemas graves e poucas pessoas sabem ou se preocupam com isso. Em
pleno século XXI e em um país rico e em constante desenvolvimento, como o Brasil,
é triste ver que a sobrevivência humana ainda pode custar o desastre de um
ecossistema. E se isso fosse no Rio de Janeiro, será que deixaríamos a
sociedade e a biodiversidade chegar ao colapso?
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Falando em seca na Caatinga, na edição dessa semana da importante revista
científica Nature saiu um comentário de minha autoria sobre esse tema e você pode
ter acesso a ela clicando aqui.
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