Passei um mês em expedição de pesquisa pela estonteante Floresta
Amazônica de Rondônia, e trouxe na bagagem dezenas de histórias, algumas
centenas de fotografias e lições que tentei documentar em meu diário de campo.
O texto abaixo foi extraído das páginas desse diário, feito em 24 de julho de
2013, as margens do rio Ji-Paraná, que possui plano para a construção da
Hidrelétrica Tabajara, em Machadinho D’Oeste, Rondônia.
Daqui de cima a floresta mostra suas
fraquezas. Nem mesmo a imponente Amazônia é párea para a nossa esmagadora
vontade de enjaular o que dizemos amar. ¹
Em tempos em que a tal agricultura familiar é
ortodoxamente apontada por alguns “ecologistas” como a salvação da natureza e
da sociedade rural, minha próxima frase poderá soar chocante, mas é real. Não
há, em grande parte do povo tradicional da Amazônia, vontade de viver em
comunhão com a floresta. Estou no alto de um serrote na margem oeste do Rio
Ji-Paraná no trecho da Fazenda Gurupá e observo assombrado o cenário que me
cerca. A floresta desse lado do rio foi completamente devastada. Do outro lado
do rio ainda existe mata, mas mesmo nessas áreas onde a floresta ainda está de
pé há claramente sinais de extração de madeira e queimadas que mancham o céu do
horizonte com um borrado branco fosco. A caça é outro gravíssimo problema aqui
e a floresta é vista apenas como um obstáculo para o desenvolvimento social e
econômico da população local, que é entusiasta do agronegócio. A Amazônia que
meus olhos veem nesse momento não se parece em nada com a floresta que vi nos
livros. Isso aqui é só um retalho empobrecido e que em breve será pastagem ao
redor de um gigante lago de hidrelétrica. Se eu mencionar que estamos dentro de
uma Unidade de Conservação, isso não muda o cenário, apenas agrava o crítico
quadro que estou descrevendo, já que esta UC não serve para nada.
Incrivelmente as pessoas aqui sabem o que é e quais
são os principais crimes ambientais, mas os cometem mesmo assim, simplesmente
porque não compreendem a relação entre exploração ambiental, conservação da natureza e
legislação. Pior que isso, a grande maioria dos relatos de caça que eu ouvi não
foram por necessidade alimentar e sim por um hábito cultural passado por
gerações. Meu próprio guia nessa viagem me contou entusiasmado sobre o dia em que,
com muita dificuldade, abateu uma anta (Tapirus
terrestris) com quatro tiros. Quando lhe perguntei o quanto de carne ela lhe
renderia, o rapaz deu uma risada encabulada e sem nenhum remorso disse que “não
se come anta por aqui, a carne é ruim demais”. Mais perplexo ainda eu fiquei ao
perguntar qual então seria o destino da anta abatida e ele me respondeu em tom risonho
“eu deixei lá mesmo”. Meninos de 12 anos aqui da Amazônia já sabem qual a
melhor carne de caça, como matar um animal sem estragar a pele e já cultivam o
seu “amor” e ódio por algumas espécies, com ou sem serventia alimentar. Por
vezes, eles matam simplesmente porque não gostam do bicho x ou y. Outro aspecto
notável aqui é a falta de educação formal da população local. Todos os guias,
mateiros e barqueiros dessa expedição (que são locais) estudaram no máximo até
a quarta série do ensino fundamental, a grande maioria não tem profissão ou
ofício e se quer possuem documentos.
Agora façamos uma reflexão. Na ausência de uma
educação formal eficiente o que deveria ser mais explorado na escola durante o
pouco período em que a população a frequenta: álgebra, química orgânica ou
educação ambiental? É fato que aqui no Brasil a educação ambiental deveria ser diferenciada
de acordo com a região e o comportamento da sociedade local. Aqui na Amazônia,
por exemplo, a realidade prática exige uma educação formal mais direcionada à
conservação da biodiversidade. Isso é estratégico e uma necessidade técnica. Após
uma base educacional voltada para questões ambientais outras áreas temáticas
poderiam ser desenvolvidas de forma eficaz e moldadas conforme a realidade e a
necessidade de cada população, como por exemplo, para a agricultura e a extração
sustentável de recursos florestais economicamente rentáveis, que seriam
otimizados e mais valorizados.
Mas o quadro educacional atual é outro. Enquanto alguns
dos bens naturais mais valiosos do nosso país estão sendo esgotados e
subaproveitados, as crianças e jovens de um Brasil invisível que vive no interior
de nossos mais belos biomas estão tendo aulas
de disciplinas inúteis, desinteressantes e com nenhuma aplicabilidade prática.
Uma triste perda, já que essas crianças e jovens serão, no futuro, os adultos
sem formação, consciência socioambiental e expectativa de trabalho que
desmatam, caçam e vivem na estreita linha do trabalho informal (como meus
ajudantes nessa expedição). Tenho consciência de que esse seria um processo lento e
que levaria algumas gerações para surtir efeito, mas é preciso começar. O Brasil tem na mão um grande laboratório a céu aberto, a Amazônia, uma região tão rica culturalmente quanto biologicamente, e é certo que com um pouco mais de esforço poderiamos tirar mais uma importante lição para ensinar a humanidade a viver em harmonia com a natureza.
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¹ Frase extraída do meu “Diário de campo IV: Rondônia”, pág. 39.
Que triste. Acho que você tem toda razão sobre a importância da educação ambiental, principalmemte nesses lugares. É como aquela frase:
ResponderExcluir“In the end we will conserve only what we love. We will love only what we understand. We will understand only what we are taught.”
Lindo o texto, continue postando!
É triste, e espero que meus textos possam alertar algumas pessoas. Obrigado pela visita e pelo comentário!
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